sábado, 24 de outubro de 2009

Milagres da Água

Assim como a chuva, que já cai com regularidade, vai pintando de verde o negro em que se tornou a paisagem depois da época das queimadas, também a água que aparece a espreitar aqui e ali da tubagem da rede pública, durante os trabalhos de instalação que lentamente continuam, enche-nos de esperança que está para breve a sua chegada às torneiras das casas.

domingo, 4 de outubro de 2009

Hoje faltou... a energia.

Tik, plak, plak, trik, trak, plik... Seis da manhã e recomeçou a sinfonia dos martelos e ponteiros que descansavam desde as 22 horas de ontem. Os chineses que estão a fazer obras na casa do outro lado da rua trabalham das seis às 22, de Domingo a Domingo... incluindo feriados. Hoje é Domingo, os chineses acordaram-me às 6 como em qualquer outro dia e quando tentei acender a luz o interruptor disse-me que ia ser mais um Domingo sem energia. Se o problema for de Cambambe deixa-nos a esperança que ainda hoje voltaremos a ter energia. Se for aqui na terra já sabemos que só amanhã ao meio da manhã regressará. Nenhum angolano repara uma avaria ao Domingo e o sistema de distribuição de energia não está entregue aos chineses... talvez devesse estar...

Foi notícia de jornal que na semana passada em Luanda os chineses não trabalharam dois dias... fetejavam-se os 60 anos da revolução chinesa, tiveram direito a dois feriados extensivos a quase todos os chineses do mundo... quase todos porque parece que a notícia não chegou até aqui. Não dei por que tivessem parado um único dia. Confesso que quando aqui cheguei nutria uma certa admiração pelos chineses. Pela sua capacidade de trabalho e de adaptação a ambientes desconhecidos e por vezes hostis, pela sua grande organização e pela humildade. Hoje mais conhecedor da realidade sei que a capacidade de trabalho é imposta e a humildade era aparente e servia apenas para camuflar uma imensa arrogância que vai aparecendo à medida que a máscara vai caindo. De momento, como ponto positivo, reconheço-lhes apenas o grande poder organizativo.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A Chuva

Depois de longa ausência anunciou-se de mansinho pelo amanhecer... tal como a chuva, também de mansinho parece voltar a vontade de passar por aqui.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Montanhas

Montanhas do Lussusso - Libolo



Agora aqui, mais logo ali, pé ante pé as colunas de fumo vão tomando conta da paisagem. Em poucos dias sem chuvas o vento quase constante e seco levou o verde predominante da paisagem e deu-lhe uma imagem acastanhada. Abriu caminho para o fogo aparecer em cena, deixando tudo preto à sua passagem enquanto mistura o seu fumo com a neblina que paira constantemente e quase invisível na atmosfera. A paisagem fica da cor do carvão, o azul imaculado do céu toma uma cor indefinida mas o véu atmosférico que resulta da mistura do fumo com a neblina, cria um matizado de uma beleza indescritível nas montanhas que nos rodeiam.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Silêncio

O silêncio é a minha maior tentação. As palavras, esse vício ocidental, estão gastas, envelhecidas, envilecidas. Fatigam, exasperam. E mentem, separam, ferem. Também apaziguam, é certo, mas é tão raro! Por cada palavra que chega até nós, ainda quente das entranhas do ser, quanta baba nos escorre em cima a fingir de música suprema! A plenitude do silêncio só os orientais a conhecem

Eugénio de Andrade

terça-feira, 9 de junho de 2009

O Conferente

A princípio é um desfile de acontecimentos estranhos e bizarros a correr diante dos olhos, mesmo para olhos com sensibilidade africana. O tempo passa e o que nos parece bizarro a princípio passa a ser encarado com naturalidade. Mas há sempre mais uma surpresa guardada...

BPC do Dondo envolto no calor infernal e habitual daquela terra. Dentro da agência bancária atulhada de gente, o ar condicionado avariado torna a temperatura no interior ainda maior. O ambiente está abafado e paira no ar um cheiro pouco agradável de corpos transpirados. A fila para os depósitos é extensa e não deixa grandes expectativas de um atendimento rápido. Com paciência e resignação cada um refresca-se como pode usando leques improvisados, na tentativa de amenizar os 45 minutos necessários para chegar ao caixa... imediatamente antes de ser atendido, um outro funcionário pede o dinheiro e o talão de depósito, confere tudo, ata o dinheiro com um elástico e devolve-o ao cliente para que faça o depósito no caixa... O caixa voltou a conferir, estava certo e registou. Fiquei sem saber se desconfiam tanto de mim, ao ponto de serem necessários dois funcionários para conferir o meu dinheiro, ou se eram os funcionários que desconfiavam um do outro. Mas que é uma boa medida para combater o desemprego, lá isso é.

domingo, 7 de junho de 2009

Diferenças

Instalou-se o Cacimbo e as manhãs luminosas e quentes deram lugar a amanheceres frescos envoltos em nevoeiros que se prolongam por vezes até ao meio dia. O céu que por esta hora se cobria de nuvens escuras a anunciar a chuvada quase diária, aparece de um azul imaculado e assim permanece até ao pôr do Sol. Com a ausência da chuva, as viagens em picadas deixaram de ser feitas sobre um mar de lama e passaram a realizar-se através de uma nuvem de poeira que cobre tudo com uma fina camada amarela de pó. O verde exuberante da paisagem, pouco a pouco muda para um verde seco à espera do fogo prestes a entrar em cena e transformar o verde em negro, negro que em pouco tempo renascerá novamente verde, a fechar mais uma vez o ciclo da Natureza...

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Multicaixa

Multicaixa (Multibanco em Portugal) fora de serviço. Por favor, dirija-se ao Multicaixa mais próximo. O que em Portugal é uma contrariedade de alguns metros, aqui é de Kms. O Multicaixa mais próximo fica a 100Kms.

Agora imaginem que o dinheiro é necessário para meter combustível no carro...

domingo, 31 de maio de 2009

É Proibido

Não era o que tinha pensado para hoje... chegou-me por mail e gostei de revisitar, não resisti!



É proibido chorar sem aprender,
Levantar-se um dia sem saber o que fazer
Ter medo de suas lembranças.

É proibido não rir dos problemas
Não lutar pelo que se quer,
Abandonar tudo por medo,

Não transformar sonhos em realidade.
É proibido não demonstrar amor
Fazer com que alguém pague por suas dúvidas e mau humor.
É proibido deixar os amigos

Não tentar compreender o que viveram juntos
Chamá-los somente quando necessita deles.
É proibido não ser você mesmo diante das pessoas,
Fingir que elas não lhe importam,

Ser gentil só para que se lembrem de você,
Esquecer aqueles que gostam de você.
É proibido não fazer as coisas por si mesmo,
Não crer em Deus e fazer seu destino,

Ter medo da vida e de seus compromissos,
Não viver cada dia como se fosse um último suspiro.
É proibido sentir saudades de alguém sem se alegrar,

Esquecer seus olhos, seu sorriso, só porque seus caminhos se desencontraram,
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente.
É proibido não tentar compreender as pessoas,
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua,

Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte.
É proibido não criar sua história,
Deixar de dar graças a Deus por sua vida,

Não ter um momento para quem necessita de você,
Não compreender que o que a vida lhe dá, também lhe tira.
É proibido não buscar a felicidade,

Não viver sua vida com uma atitude positiva,
Não pensar que podemos ser melhores,
Não sentir que sem você este mundo não seria igual.

Pablo Neruda

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Terramoto

Acordar a meio da noite com a cama a abanar, ouvir as portas a bater e a loiça dos armários a tilintar, tudo seguido de um rumor subterrâneo que se afastava lentamente não me fez levantar da cama. Na altura tive a percepção que teria sido um abalo sísmico, mas virei-me para o outro lado e tentei continuar a dormir… Levantei-me perguntando-me se teria sido apenas um sonho ou teria mesmo acontecido o tremor de terra… outros confirmaram-me que tinha mesmo acontecido.

Decididamente, viver onde as forças da Natureza são encaradas como algo que está acima do entendimento humano, não deixa de ter influência nas atitudes de quem é mais racional.

domingo, 17 de maio de 2009

Sensações

A vida é para nós o que concebemos dela. Para o rústico cujo campo lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe ainda é pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade, não possuímos mais que as nossas próprias sensações; nelas, pois, que não no que elas vêem, temos que fundamentar a realidade da nossa vida
Fernando Pessoa

sábado, 16 de maio de 2009

De Caixão à Cova

Hoje consegui entender o porquê da expressão "bebedeira de caixão à cova"... aqui mesmo em frente, no óbito que ruidosamente ocupou toda a noite, enquanto o caixão já pronto para ir para a cova esparava pela hora marcada, as pessoas em volta embebedavam-se até não poder mais.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Dias

Hoje parece tudo perfeito dentro e fora de mim!
Começou por entre as estrelas e a Lua, já quase Lua cheia, projectadas no negro céu da madrugada. O nascer do Sol com a sua claridade transformou lentamente o negro em azul intenso e as estrelas em pedaços de nuvens de um branco imaculado, dispersos com a harmonia de que só os deuses são capazes. Às vezes, de uma forma inexplicável, acontece esta sintonia entre mim e tudo o que me envolve...
Nestas alturas não posso deixar de me interrogar de onde me virá este canto feliz de um dia.

sábado, 2 de maio de 2009

A Música

Seriam 22horas quando me deitei ao som da música que do outro lado da rua, debaixo de uma mangueira, anima ainda mais os já de si alegres angolanos. A cantina, loja de bairro que se dedica à venda de produtos de primeira necessidade, que organiza a festa é propriedade de gente proveniente das províncias do Norte de Angola, aqui são conhecidos por Langas, e é óbvio que a música dominante na farra é a de lá do Norte, não muito do meu agrado. Mas anima o pessoal que lá aparece sempre pronto para se divertir, e também não me impediu de adormecer com facilidade, nem que dormisse toda a noite sem interrupção. Ajudou sim o meu acordar às seis da manhã com a batida forte do baixo e do batuque no reinício da farra às seis da manhã...

domingo, 26 de abril de 2009

Contrastes

África é mesmo assim. Uma vila com tantas, mas tantas deficiências em necessidades básicas como água potável, energia eléctrica, ensino, combustíveis, e sei lá que mais, tem médicos especialistas em quantidade e qualidade de fazer inveja a muitas povoações de média dimensão em Portugal. E ainda com a vantagem de serem médicos sem vícios mercantilistas, muito mais preocupados com o bem estar do doente do que pelas vantagens económicas que a profissão lhes pode trazer. Pena que o Hospital, do mais moderno que existe em Angola, e já completamente equipado, continue fechado por falta de enfermeiros...

domingo, 12 de abril de 2009

Cansaços

Depois da chuvada que agora se tornou diária e pontual no horário, já se vislumbra algum azul no céu, e o brilho do sol nas gotas da chuva que permanecem agarradas às folhas das plantas faz delas diamantes efémeros, e talvez por isso, ainda mais belos e valiosos que os eternos. À passagem do vento pelas árvores, as folhas acenam verdes. Mais logo, com o descer do sol no horizonte, e quando o fresco da noite se tornar ligeiramente frio, o pouco azul do céu que se mostra vai passar progressivamente ao cinzento e ao negro das nuvens que agora fazem companhia ao azul. Também os verdes e leves acenos das folhas das árvores à passagem da brisa fresca que ameniza o calor, não passarão de manchas de sombras projectadas pelo luar no chão quieto. Tudo fora de mim parece tão perfeito, belo e natural que me sinto destoar do que me rodeia. O que os sentidos acham belo e harmonioso não consegue ser partilhado pelos sentimentos. E esta dificuldade que às vezes tenho em harmonizar o interior de mim com o que me rodeia, traz-me este cansaço de corpo e alma que sinto sem saber de quê, e um cansaço assim é o mais horrível dos cansaços.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Ditados

Não há bonança que não dê em tempestade... A Sul, nesta minha terra em part time tão diferente da outra, até os ditados tradicionais são invertidos. Enquanto a Norte se ansiava pelo fim das tempestades, cá esperava-se com impaciência pelo seu aparecimento. Num ano excepcionalmente seco como este, qualquer gota de água caída do céu é uma bênção.

Enquanto o sol vai aparecendo com mais convicção no hemisfério Norte, e a chuva se torna mais rara e menos desagradável, trazendo alegria aos rostos macambúzios próprios de quem atravessou um longo e duro Inverno, aqui o mesmo efeito é conseguido com o processo inverso. Os rostos crispados, quase de desespero transformam-se e aparecem sorridentes a irradiar felicidade com o aparecimento das primeiras tempestades. Para além de trazer a humidade tão necessária à agricultura a morrer lentamente em terra ressequida, também contribui para refrescar o ar excessivamente quente e seco dos dias em que não chove. Os mais crentes atribuíram a chegada da chuva a uma bênção trazida pelo Papa na sua visita por uns dias a Angola...

Lágrimas

Mãe e filho adolescente vigiados por guardas fortemente armados, apenas se podem tocar através dos pequenos buracos de uma rede colocada no deserto. É o aniversário do filho. Nenhum deles é prisioneiro, mas devido a leis feitas por homens instalados em gabinetes com ar condicionado, ambos estão impedidos de saltar a rede para o outro lado… A distância, bálsamo para o sofrimento nascido da ausência, não existe. A impossibilidade do trânsito de almas proporcionado pelo abraço desejado aumenta o sofrimento, e o amargo das lágrimas mútuas de dor substitui o doce das de felicidade que nasceriam do abraço adiado. Por caminhos mais tortuosos, também as lágrimas de dor são capazes de cumprir na perfeição o papel de fundir duas almas…

Isto não acontece na fronteira Israelo-Palestiniana ou noutra qualquer fronteira obscura e violenta das muitas que existem neste mundo em convulsão! Tem lugar todos os dias na fronteira entre o México e os EUA!

domingo, 22 de março de 2009

Mais alguém morreu esta noite aqui por perto... os choros acompanhados por gritos rua a cima, rua a baixo feito por carpideiras voluntárias que acordam a madrugada, anunciam o que por aqui é banal, como sendo algo de extraordinário. Estivesse eu disposto a isso, e todos os fins de semana que venho passar à vila teria um óbito de alguém conhecido, ou familiares de conhecidos, para participar. Sem ter conseguido voltar a adormecer, pensava fazer um post sobre isto, quando a luz, numa inundação de claridade, entrou de jorro no meu quarto.



Nos raios de Sol que conseguem entrar no quarto por entre as grades que protegem a janela, pude ver os flocos de poeira que esvoaçavam alegres, indiferentes aos choros e gritos que, mais ténues e mais intercalados, ainda continuavam no exterior. Veio-me à memória uma frase batida, não a do Sérgio, "és pó e em pó te hás-de tornar", e sem esforço consegui imaginar vidas carregadas de preocupações várias e de sufrimentos infimitos, transformadas em partículas de pó felizes a banharem-se de luz...

quarta-feira, 18 de março de 2009

A Chuva

Finalmente, alguma da chuva que tem caído como uma calamidade noutras partes de Angola, chegou a esta região sedenta de água como uma benção. Duas grandes chuvadas transformaram miraculosamente linhas de água já completamente secas em ribeiros alegres, com um caudal bastante consistente mesmo depois de passada a água da enxurrada. Tal como as suas gentes, também a natureza em África é feita de extremos…

sexta-feira, 13 de março de 2009

A Viagem

Dezanove horas depois do início da viagem o avião parece sobrevoar o paraíso. O pôr do Sol incendeia as águas do Oceano, polvilhado de ilhas e navios preguiçosamente à espera de vez de entrar no porto, com as suas cores quentes. Mas quando nos aproximamos do solo e vamos pouco a pouco conseguindo vislumbrar os milhares de habitações precárias que cobrem toda a área por baixo de nós, mergulhadas num caos urbanístico difícil de descrever, começamos a desconfiar que aquela visão paradisíaca não passe de uma ilusão…

A aterragem perfeita do 747 das Linhas Aéreas da África do Sul que nos transportou leva-nos à confirmação das suspeitas. Ao sair do avião um dos passageiros não suportou o choque proporcionado pelos mais de trinta graus de temperatura, associados a um teor de humidade doar a rondar os 90%. Desfaleceu e teve que receber assistência médica. Devido a deficiências na rede de telemóveis, apenas três quartos de hora depois da aterragem foi possível fazer o primeiro contacto telefónico. Numa sala com a temperatura vários graus a cima da temperatura ambiente do exterior e já com toda a gente a destilar, consegui falar por telefone com a pessoa que me vinha buscar. Estava ainda a duzentos quilómetros e à procura de gasóleo para prosseguir a viagem até Luanda. Esgotado nas bombas, só a candonga poderia resolver o problema. Entre encontrar o gasóleo, fazer os duzentos kilómetros e vencer o engarrafamento crónico em que Luanda está transformada quase 24 horas por dia, foram mais três horas de espera com duas opções… ou sentado na sala do desembarque das bagagens mergulhado em suor e 40º de temperatura, ou cá fora de pé onde a temperatura se tornou bem mais suportável com o cair da noite. Para quem tinha acabado de fazer uma viagem de 7 horas sentado, a decisão não foi difícil tomar… mas foi difícil de suportar.

Às 22 horas chegou a minha boleia. Depois de uma paragem num restaurante para eu comer um bitoque com um bife tipo borracha, e o meu companheiro devolver uma omeleta intragável por excesso de sal, metemo-nos à estrada pelas 23:30 horas. Mais três horas a enfrentar corajosamente os máximos nunca baixados ou os faróis completamente desalinhados dos automóveis que se cruzaram connosco, e estávamos em casa. Cansados mas inteiros…

Tentei enviar um SMS mas a rede estava off… no dia seguinte ao acordar a rede continuava off, agora acompanhada pela energia eléctrica que também falhou. Quarta feira não houve alterações e quinta até à hora a que saí para o interior tudo continuava na mesma. Hoje é sexta, muito em breve vou para a vila e apesar de tudo conto conseguir publicar este post… o optimismo é uma grande mais valia dos angolanos. J

A Viagem

Dezanove horas depois do início da viagem o avião parece sobrevoar o paraíso. O pôr do Sol incendeia as águas do Oceano, polvilhado de ilhas e navios preguiçosamente à espera de vez de entrar no porto, com as suas cores quentes. Mas quando nos aproximamos do solo e vamos pouco a pouco conseguindo vislumbrar os milhares de habitações precárias que cobrem toda a área por baixo de nós, mergulhadas num caos urbanístico difícil de descrever, começamos a desconfiar que aquela visão paradisíaca não passe de uma ilusão…

A aterragem perfeita do 747 das Linhas Aéreas da África do Sul que nos transportou leva-nos à confirmação das suspeitas. Ao sair do avião um dos passageiros não suportou o choque proporcionado pelos mais de trinta graus de temperatura, associados a um teor de humidade doar a rondar os 90%. Desfaleceu e teve que receber assistência médica. Devido a deficiências na rede de telemóveis, apenas três quartos de hora depois da aterragem foi possível fazer o primeiro contacto telefónico. Numa sala com a temperatura vários graus a cima da temperatura ambiente do exterior e já com toda a gente a destilar, consegui falar por telefone com a pessoa que me vinha buscar. Estava ainda a duzentos quilómetros e à procura de gasóleo para prosseguir a viagem até Luanda. Esgotado nas bombas, só a candonga poderia resolver o problema. Entre encontrar o gasóleo, fazer os duzentos kilómetros e vencer o engarrafamento crónico em que Luanda está transformada quase 24 horas por dia, foram mais três horas de espera com duas opções… ou sentado na sala do desembarque das bagagens mergulhado em suor e 40º de temperatura, ou cá fora de pé onde a temperatura se tornou bem mais suportável com o cair da noite. Para quem tinha acabado de fazer uma viagem de 7 horas sentado, a decisão não foi difícil tomar… mas foi difícil de suportar.

Às 22 horas chegou a minha boleia. Depois de uma paragem num restaurante para eu comer um bitoque com um bife tipo borracha, e o meu companheiro devolver uma omeleta intragável por excesso de sal, metemo-nos à estrada pelas 23:30 horas. Mais três horas a enfrentar corajosamente os máximos nunca baixados ou os faróis completamente desalinhados dos automóveis que se cruzaram connosco, e estávamos em casa. Cansados mas inteiros…

Tentei enviar um SMS mas a rede estava off… no dia seguinte ao acordar a rede continuava off, agora acompanhada pela energia eléctrica que também falhou. Quarta feira não houve alterações e quinta até à hora a que saí para o interior tudo continuava na mesma. Hoje é sexta, muito em breve vou para a vila e apesar de tudo conto conseguir publicar este post… o optimismo é uma grande mais valia dos angolanos. J

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Os Chineses 3





25/01/09
A manhã começou luminosa mas não conseguia apagar a perspectiva de um domingo burro. Fim-de-semana sem nenhum acontecimento relacionado com o jet set cá do sítio ou sem futebol, outro acontecimento que também enche a vila de calulenses da diáspora, é sempre um domingo burro. (Burro em linguagem angolana é a classificação dada a tudo o que não presta.) Para matar a manhã tínhamos umas fotos programadas às obras do estádio. Para a tarde alguma coisa se arranjaria…

À chegada ao estádio estranhamos a falta de movimento. Ninguém nos postos de trabalho habituais sete dias por semana. Alguma coisa de muito estranho se passava. Já no interior tornaram-se perceptíveis vozes que chegavam de um dos anexos do estádio. Ocorreu-nos que talvez estivessem em reunião e fomos entrando um pouco a medo. Nada de reunião. Na camarata, que também serve de sala de refeições, chineses e angolanos conviviam à mesa com um registo de som das vozes exageradamente elevado, intercalada por sonoras gargalhadas, nada habitual nos dias de trabalho.
-Entrem, entrem – disseram lá de dentro logo que nos avistaram à porta. Alguns passos na direcção deles e já tinha nas mãos uma cerveja Cuca, natural, e dois cigarros AC.

Intrigadíssimos com aquela euforia tão latina em chineses conhecidos pelo seu modo reservado, ainda demoramos alguns minutos a conseguir perceber o que se passava. Era a comemoração da entrada do novo ano chinês. Sugeri umas fotografias para recordação. Aceitaram a sugestão com entusiasmo e o programa de sessão fotográfica às obras do estádio foi para o espaço. Pediram fotografias em grupo, sozinhos, com o chefe angolano, repetindo até à exaustão… Chefe bom, chefe amigo…

A partir daí foi só surfar a onda. Muita cerveja em brindes sucessivos, quando algum dos chineses bebia um golo sugeria um brinde em grupo ou a um dos presentes em particular. Nunca bebiam um golo sem a companhia de alguém e como todos faziam questão em oferecer também a sua cerveja, matéria prima para os brindes nunca faltou. Muitos cigarros recebidos directamente para o bolso, não fumo mas segredaram-me que não aceitar um cigarro quando nos é oferecido pode ser considerado uma ofensa, e muita comida chinesa. Detesto a comida chinesa que é fornecida nos restaurantes chineses da Europa, o que me fez aceitar com alguma relutância provar a comida quando me convidaram para lhes fazer companhia na refeição. Muita carne e legumes, tudo muito cortadinho, com um paladar ligeiramente diferente do da nossa cozinha mas sem nenhuma semelhança com o que se come nos restaurantes chineses. Gostei e não me fiquei pelo provar. Com algumas explicações ao fim de pouco tempo já conseguia apanhar na perfeição os pedacinhos mais pequenos com os talheres tradicionais chineses. Com linguagem gestual consegui perguntar por que não utilizam talheres Europeus e entender a resposta. Disse o meu interlocutor que trabalhar com pauzinhos obriga ao trabalho de todos os músculos do braço e de uma grande parte do cérebro, funcionando como um relaxante para a comida ter uma melhor digestão. Apesar dos nossos esforços não conseguimos saber qual o animal do novo ano chinês, mas saímos de lá muito mais ricos do que tínhamos entrado na capacidade de compreender os diferentes.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Amostra Sem Valor


Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.

António Gedeão



E assim, graças à falta de inspiração e da motivação em baixa, consigo elevar o nível do Blog

domingo, 18 de janeiro de 2009

O Amor

Amo o amor que se reparte
em beijos, leito e pão.
Amor que pode ser eterno
mas pode ser fugaz.
Amor que se quer liberar
para seguir amando.
Amor divinizado que vem vindo
Amor divinizado que se vai.

Pablo Neruda

sábado, 17 de janeiro de 2009

Um Serão à Fogueira

Chegaram de longe. Quase 200Km mais para o interior, de onde além de alguns campos de milho e de feijão para consumo próprio e algumas bananeiras para o fabrico de capuca pouco mais há. O tio e mais dois já com alguns anos e os dois sobrinhos com cara e corpo de criança queriam emprego. Alguém que já cá trabalhou indicou-lhes onde poderiam encontrar emprego com comida e algum dinheiro ao fim do mês.

Aceitar o homem e dispensar os miúdos, via-se que tinham menos dos dezasseis anos permitidos por lei para trabalhar mas eles afirmavam que os tinham, estava fora de questão. Vieram em pacote e teriam de ser aceites ou rejeitados em pacote. Sabíamos que caso fossem rejeitados o destino talvez fosse regressar a casa , e agora sem os meios que entretanto tinham sido gastos na viagem. Foram integrados na força de trabalho. O adulto no trabalho normal e as crianças no serviço de apoio à nossa cozinheira São sobrecarregada de trabalho.

Os dias passaram, os miúdos adaptaram-se bem a um mundo totalmente desconhecido de pratos de sopa, pratos pratos rasos, copos para água, copos para vinho, canecas para café, etc, etc, uma cnfusão de todo o tamanho para quem até agora sempre comeu com a mão, e apenas tinha um prato e uma caneca de esmalte que serviam para tudo.

Com os dias a passar ganharam confiança e me apanhei com os dois sentados à fogueira depois de jantar perguntei ao que me parecia mais novo.
-Dezasseis anos-foi a resposta pronta.
-Isso foi o que te mandaram dizer, deves ter treze...
-Tem catorze, disse o outro depois de momentos de silêncio comprometedor.
-E tu, quantos anos tens?
-Eu tenho 15!
-Estudaste?-Dirigi-me novamente ao mais novo.
-Tenho a terceira.
-Tens que estudar mais, a terceira é muito pouco.
-Não tenho cédula. Venho ganhar dinheiro para comprar a cédula!
-Quanto custa a cédula?
-Quatro mil Kuanzas... (Metade do salário mínimo)
-O teu pai não tem dinheiro para comprar a cédula?
Baixou a cabeça e fez um silêncio prolongado...
-O pai dele foi embora no tempo da guerra e não voltou-respondeu o primo...