segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Excelsis.

É nestes dias de isolamento e solidão que tomo consciência da falta que os livros me fazem. Não que eu seja um leitor exemplar nem um devorador de livros, nada disso. Tenho todas as qualidades para ser um mau leitor. Mas gosto de os ter como companhia. Hoje, mais que noutros dias, senti saudades de recomeçar com novo entusiasmo a ler um livro abandonado a meio. De ir até ao escritório, olhar para a estante e escolher um para, muitas vezes, voltar a pôr no sítio depois de o sentir, cheirar e passar os olhos por alguns parágrafos aleatoriamente. Ou mesmo ter a liberdade de apenas olhar para eles, e não pegar em nenhum por opção. Tal como os bons amigos, sei que nunca serão passado. Estarão sempre disponíveis, numa espera sem tempo, quando os procurar.

Mas hoje não pude fazer nada disso. Com apenas treze livros na “estante”, já lidos e relidos, tomei consciência da importância daqueles gestos simples e quase inconscientes. Socorri-me do livro que por mais que seja lido, nunca estará lido, que me fez companhia durante o resto da tarde…

Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e por um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.
Na cadeira, onde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído
.

O livro do Desassossego, Bernardo Soares.

Um Dia Molhado

Depois de uma noite completamente seca, ao primeiro toque da sirene às 5:30 da manhã, ela chegou serena e quase despercebida, mal se ouvindo o som dos primeiros pingos na chapa. Ainda tímidos e em pequena quantidade pareciam o início de mais uma manhã como outra qualquer de cacimbo forte. Daquele cacimbo quase chuva, capaz de molhar com facilidade quem se aventure por ele dentro. Mas ao segundo toque, quinze minutos depois, as gotas engrossaram e intensificaram-se. Às seis já não foi possível marcar as presenças do pessoal que se preparava para mais um dia de trabalho. Um compasso de espera serviu para que abrandasse o suficiente para se poder começar os trabalhos. E foi assim todo o dia. Ora com mais intensidade, ora com a suavidade com que começou o dia, foi uma companheira. Só às 16 horas se decidiu a deixar de brincar, convocou o vento e a trovoada, os companheiros habituais, e brindou-nos com litros e litros de água. Não com a fúria da tempestade de há dias, mas muito mais prolongada e persistente. São 17 horas e ainda não dá sinal de abrandamento. Os mais conhecedores deste clima dizem que quando assim é, é para toda a noite. Vamos ver…

… E foi mesmo… o choro melancólico das nuvens na chapa de cobertura foi o canto que me embalou durante a noite.

Manhã Diferente











Ainda sem persianas na janela e com um cortinado quase transparente, os primeiros raios da manhã inundaram livremente o quarto virado a nascente, substituindo com vantagem o despertador. Ainda antes das sete já estava de partida para fazenda. Desta vez por um trajecto diferente, que faz aumentar a distância de 35 Km em picada, para 110, repartidos entre 80 de asfalto e 30 de picada.

Sozinho no carro, sem a música nem o rádio ligados por opção, entreguei-me à paisagem que ia aparecendo à minha frente. Muita gente na estrada à saída da vila/cidade, na sua grande maioria mulheres acompanhadas de crianças, carregando ferramentas de lavoura nos recipientes vazios que ao cair do dia permitirão trazer o que servirá de jantar a toda família naquele dia. Caminhando literalmente no meio da estrada, afastam-se lentamente com à aproximação do automóvel. Devido a este intenso tráfego pedonal, só ao fim de alguns quilómetros pude libertar a atenção da estrada e aconchegar os olhos a um vasto panorama de floresta de montanha. Vestida de lavado pelo forte cacimbo que se fez sentir durante a noite, e matizada de centenas tonalidades diferentes de verde, ali estava pronta para ser desfrutada, toda a beleza e o esplendor de uma floresta tropical. Só a longa e estreita faixa de asfalto negro destoa da cor dominante. Nesta altura do ano em que o começo das chuvas faz renascer a vegetação, cada planta capricha em ter um verde diferente de todos os outros, chegando algumas delas por si só a apresentar várias tonalidades diferentes de verde, consoante a idade da folhagem ou o ângulo de incidência da luz. Aqui e ali as nuvens baixas escondiam o pico das montanhas mais altas, permitindo-nos imaginá-las tão altas quanto o tamanho da nossa imaginação. Foram 40 Km de distância com 600m de desnível mergulhado em verde. Depois de uma curva apertada numa garganta estreita entre duas montanhas, o sol que inunda toda a planície lá ao fundo quase me encandeia com o seu aparecimento inesperado. Os verdes tornaram-se acastanhados e a floresta de árvores de grande porte deu lugar a uma espécie de Savana com árvores quase arbustos.








Na planície rodeada de altas montanhas sobressaem os pavilhões brancos do aviário gerido pela Vovó Galinha, alcunha carinhoso devido à dedicação que tem pelos seus pintos. Uma visita de “cortesia” à Vovó Galinha, um dia ainda falo aqui da Vovó Galinha… Acho que ela merece um post exclusivo. A “cortesia” deveu-se a uns dinheiros atrasados que o aviário nos deve!! Quarenta e cinco minutos de conversa em forma monólogo, quem me conhece sabe de certeza quem dominou o monólogo, e segui viagem na estrada que liga Luanda ao Huambo, no famoso troço dos Morros do Lussusso, terror dos camionistas já na era colonial. Impressionante o número de carcaças de camiões que ladeiam a estrada. Um autêntico cemitério de camiões e camionistas. Facilmente nos apercebemos pelo aspecto que algumas jazem ali há muitos anos, mas outros são bem recentes. Lá estava, no fim de uma descida e antes de uma curva, espalhados numa ribanceira, os restos dum camião e da ração que vinha da Namíbia para os pintos da Vovó Galinha. O camião tinha-se despistado três dias antes e o seu aspecto, separado em várias partes, não permitia ter grandes esperanças na sobrevivência do motorista. Mas sobreviveu, segundo informação acabada de receber da minha interlocutora recente. Sobreviveu ao acidente mas duvido que tivesse sobrevivido aos serviços de saúde. Estrangeiro, sem padrinhos ou conhecidos foi recusado em três hospitais antes de ser aceite num…

Com a subida em direcção ao Lussusso voltou o verde, mais fresco que o da planície mas sem a exuberância do verde das outras montanhas e sem a presença das árvores de grande porte. Reapareceu sim a humidade e o sol despediu-se. Ainda não eram 9 horas da manhã e a luminosidade permitida pelas nuvens negras que se avistavam lá em cima e ao longe, mergulhou-me num crepúsculo prematuro e prolongado!! Muita chuva lá no alto, chuva que me acompanhou durante todo o trajecto de picada que ainda tive que fazer até casa/fazenda. E conduzir em picada com chuva não permite olhar a paisagem para a poder descrever…




sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Vidas


Incansável, castigada pelo sol forte que hoje se faz sentir e com o bebé de um ano às costas, vai limpando as ervas do quintal que teimam em crescer mais de um centímetro por dia. Ora a rapar com a enxada as ervas sem préstimo algum, ora a escolher e e arrancar à mão, com a deliciosa preguiça que no mundo de hoje só em África ainda é possível, aquelas que provavelmente lhe servirão de jantar, ora descansando encostada ao cabo da enxada enquanto amamenta o bebé e deita um olhar aos outros três filhos sentados à sombra de uma árvore entretendo-se sabe-se lá com quê, espera que mais um dia acabe, com a certeza que os que aí vêm não serão melhores.

O marido que também trabalhava aqui foi ontem despedido e ela ficou com 4 crianças, de idades compreendidas entre um e os seis anos para sustentar. Dito assim, o despedimento pode parecer um acto desumano e que para a senhora terá sido uma desgraça. Mas em África, tal como nas sombras chinesas, em todos os acontecimentos a realidade está sempre escondida por de trás do biombo.

Com dois filhos de uma união anterior, e os outros dois deste novo companheiro, além dos maus tratos sofridos por ela e pelos filhos, ainda era obrigada a gastar quase todo o seu vencimento em bebida para ele. Quando soube que o marido foi despedido, por desacatos provocados por ele no acampamento durante a noite, apressou-se a perguntar se ela poderia continuar a trabalhar por cá. Por cá ficou.
Além de aqui estar mais ou menos protegida, em vez de seis, passa a ter apenas cinco bocas a sustentar.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Tempestade

O dia acordou sereno e silencioso, de um silêncio estranho e profundo. Não o silêncio que resulta da ausência das pessoas que foram, na sua grande maioria, passar o fim-de-semana à vila. Era a própria natureza em silêncio, sem as dezenas de cantos e chamamentos que diariamente àquela hora chegam da floresta envolvente, sem o ladrar incessante dos cães ou o cantar do galo. Tudo adivinha que alguma coisa irá acontecer…

Ao sair à rua, apenas a ténue claridade que conseguia vencer o manto espesso das nuvens dizia que o Sol estaria algures acima do horizonte. E o silêncio assim… visto... era ainda mais pesado que o silêncio apenas ouvido. Fiquei também em silêncio, como se qualquer ruído meu pudesse quebrar algum encanto misterioso pairando no ar. Durante longos minutos tive a sensação que o silêncio já absoluto se ia tornando ainda mais profundo, enquanto as nuvens passavam progressivamente do cinzento ao negro e o dia, que não chegou a aparecer, era novamente noite. Mais duas pessoas se levantaram entretanto, estranharam o ambiente, e a previsão foi de que iria chover muito.

O ruído da descarga de uma faísca a cair muito perto, associado ao trovão quase em simultâneo, fez o céu desabar em luz, água e gelo. O barulho ensurdecedor da chuva e granizo, na chapa de zinco que cobre a casa, não permitia sequer falar com alguém, mesmo gritando, a mais de 30cm de distância. Mais de uma hora infernal de vento forte, muita chuva, granizo, trovoada acompanhada de relâmpagos em sequência rápida e regular, deu uma pequena amostra da força da Natureza.

Passada a fúria, e como que obedecendo algum maestro imaginário, a tempestade abrandou, e lentamente desapareceu por completo. Por momentos o silêncio voltou a dominar. Então, um a um, todos os sons habituais e familiares, temporariamente emudecidos, retomaram o seu lugar.

Angola… África em todo o esplendor dos seus contrastes. Infelizmente, outros contrastes, nada têm de espectacular ou poético.

Ausências

Do alpendre virado a poente vi morrer a tarde por de trás do arvoredo já verde, depois de meses pintado de negro. Tarde triste de sábado a ler e a apagar escritos velhos, cansados de esperar pelo dia que nunca surgiu, em que uma maior inspiração os pudessem melhorar. Por cada frase mais conseguida, tanta inépcia, tanta hesitação, tanta ingenuidade…. Tentativas vãs de vencer a inércia e voltar a colocar aqui alguma coisa. Mas se penso um dia revisitar-me, não posso deixar de expor hoje as minhas incapacidades.