terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Bolachas de Lodo

Hoje, quando li no Público que a ajuda alimentar às pessoas necessitadas iria ser racionada, decidi recuperar algo que ouvi há dias.


Já vimos a miséria extrema na televisão. Abutres pairando sobre crianças que vão morrer não tarda nos descampados de África, à míngua de tudo. Camponeses comendo ervas dos caminhos. Eu vi em Bombaim seres humanos com menos dignidade que as minhas sandálias, a poucos metros da mais ofuscante opulência. Faz-se um nó no estômago mas um Comboio espera-nos ou um Pôr do Sol, e a escala desmedida da desumanidade da paisagem tem um estranho poder anestesiante.



Por isso dei comigo espantado com o que nestas imagens, dez imagens de uma foto galeria anteontem publicada no El Universal, me provocava uma insensata tristeza, uma estúpida vontade de chorar. As imagens e as notícias que elas dão correram ontem os jornais da América Latina e já foram confirmadas pela FAO. Elas confrontam-nos com a pobreza extrema que varre o Haiti. Há milhares de famílias que não podem comprar sequer uma libra de arroz e isso explica o fenómeno das bolachas de lodo. Se puderem procurem na net. Procurem as imagens, as centenas de latinhas espalhadas no chão dos mercados de City Soleil, as quais vão secando ao sol as bolachas de lodo, moldadas por mãos que parecem de oleiro. Poderíamos legendá-las: Olaria da fome. Uma das legendas do El Universal fala de alívio para a fome. Outra explica que o lodo é uma fonte de cálcio e anti ácidos. Há uma mulher que fala de dores de estômago por causa das bolachas de lodo comidas ao longo do dia. Ainda não inventaram bolachas de lama light ou lama integral. O que se passa é ainda a arte desesperada que povoa os mercados. A receita é simples: Terra, sal e azeite vegetal.



Vejam como ficou a língua deste miúdo. O pequeno Cajane de 11 anos, que acabou de comer uma bolacha de lama. Esta língua que desafia os dicionários da bondade social. Eles anotam "tirar o pé do lodo" no sentido de puxar a vida para cima, sair da miséria. Cajane mostra entretanto a língua como quem mostra as mãos vazias. Os dicionários ainda não acolheram a expressão "Provar o Lodo". Os dicionários, tal como as políticas sociais, não têm a elasticidade do Livro das Ignorâncias de Manuel de Barros, mas o menino do Haiti está nos versos do poeta do Pantanal: "Fui adoptado em lodo", ainda que ao contrário de Bernardo não possa dizer "estou deitado em composturas de águas". Charllene, 16 anos, um filho de um mês, há dias em que não come senão bolachas de lama. Diz que tem dores de estômago e que quando amamenta, lhe parece que o bebé fica também com cólicas.



Eis o Haiti. Se puderem procurem as imagens na net. Algumas são... estranhamente belas!!

"Sinais" TSF - 31/01/08

2 comentários:

Unknown disse...

Olá!!!

Como já falamos, não há mais palavras para dizer o que quer que seja ... :-((((

Assim vai o Mundo...

Beijo

Seagul disse...

Pois é...
E nós, barriguinha cheia de tudo e demais do que é bom, ansiamos por bolachas de ... infinito!!!